Pacto pelo Futuro da ONU e a multilateralidade
Existe uma diferença em conceito que barra iniciativas como a proposta pela Assembleia Geral
Neste 22 de setembro foi aprovada pela maioria dos países membros da Assembleia Geral da ONU um documento chamado de “Pacto pelo Futuro”. Este longo texto traz em resumo 56 ações para coordenar as relações internacionais entre os países a partir de agora, reforçando ampliando espaços dentro da própria organização — como o Conselho de Segurança — mas também enaltecendo a cooperação entre países de forma multilateral.
Países como Rússia, Venezuela, Nicarágua, Irã, Coreia do Norte, entre outros fizeram objeções ao texto. Enquanto isso China e Brasil, concordaram com a maioria dos pontos do texto. Contudo, na média a maioria dos diplomatas ficaram desapontados com o marketing em torno de um texto que simplesmente foi mais do mesmo. Esse é o ponto que se apegou a Rússia, por exemplo, dizendo que não foi amplamente discutido e mencionando que muitos ficaram em silêncio.
Pode-se dizer que o texto em si não foi profundo o bastante para modificar a governança internacional como queriam alguns países. Pelo contrário, reforçou uma posição já adotada na própria ONU de multilateralismo. Acontece que a compreensão do termo difere de país para país, condicionando as entrelinhas a principal forma de entender os objetivos deste documentos e de outros tantos. Para se ter uma ideia, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da própria ONU também acreditavam no princípio da multilateralidade, mas determinavam posições diferentes para cada tipo de ‘multilateralidade’.
Para diversos teóricos das Relações Internacionais, existe uma grande diferença entre os conceitos de multilateralidade e multipolaridade. Inclusive alguns países diferenciam tais conceitos de maneira diferente que a teoria os denomina. Do ponto de vista teórico, frisa-se, a multilateralidade corresponde a relação entre Estados diretamente, sem intermédio de nenhuma agência ou ente. Essa postura é adotada pela Rússia, que mesmo buscando espaço hegemônico na região pós-soviética, se relaciona caso a caso. É importante saliente que a Rússia compreende esse multilateralidade como se fosse multipolaridade.
Já para o Brasil o conceito de multilateralidade é um pouco diferente. Por muitos anos o país foi signatário de uma prática chamada de pragmatismo, ou seja, aquilo que é bom para o Brasil será realizado. Isso proporcionou direções dúbias em alguns momentos, como durante a Segunda Guerra Mundial quando Getúlio Vargas acenava ora para as forças Aliadas, ora para as forças do Eixo. Também se repetiu enquanto o país atravessou uma ditadura militar entre 1964 e 1985, que apesar de ser de direita aceitou a independência de países africanos com governos comunistas.
Para o Itamaraty a perspectiva de multilateralidade corresponde ao estabelecimento de relações entre países com aval a preceitos básicos da democracia liberal tais como a direitos humanos, liberdade de expressão e negociação, justiça social, dentre outros. Para a diplomacia brasileira o conceito de multipolaridade corresponde a ascensão própria de outros países do Sul Global como protagonistas no cenário internacional, ou seja, nos organismos internacionais de deliberação e consenso, como a ONU. Por este motivo decisões da ONU, Tribunal Penal Internacional, Corte Internacional de Justiça e outros são levados tão a sério por aqui, inclusive na própria imprensa cotidiana. Por este motivo o Brasil busca um assento no Conselho de Segurança da ONU, pois crê que seria protagonista naquele espaço, levando a crer que outros países também anseiam com o crescimento homogêneo de todos no mundo.
Obviamente os Estados Unidos não pensa dessa forma, como foi visto durante as reuniões do Conselho de Segurança em outubro de 2023, para tratar de um cessar-fogo entre Israel e o Hamas, durante a invasão de Gaza. Diversas vezes Brasil e outros países apresentaram propostas, mas todas foram vetadas pelos EUA. Isso demonstra claramente que este país pensa diferente com relação a multilateralidade.
Com grande proximidade a tese do “big stick” em conjunto com a teoria Realista de Relações Internacionais, os EUA promovem a busca pela unipolaridade. Na sua concepção somente existirá paz e segurança internacional quando houver apenas uma força hegemônica coordenando as ações no cenário internacional. Neste caso a única força hegemônica seria os Estados Unidos, com todas organizações e nações orbitando seus anseios e desejos.
Para atingir tais objetivos se fazem valer da democracia neoliberal, ou seja, a propagação do conceito de “self-made man”, da redução gradual do papel do Estado (a nível doméstico), da ampliação da participação de corporações nas decisões e principalmente na redução da função da política. Isso levou a ascensão de líderes como Donald Trump e uma política externa focada principalmente em tornar os EUA alheios as decisões internas, mas condutor direto nas decisões externas. Evita-se o consenso com base nas mais diversas nuances simbólicas, mas se discutem tomando por base a ideia que o Estado serve para proteger o capital.
Isso vai na contramão do pensamento chinês, que enxerga no multilateralismo um crescimento social do mundo. Para a China existe a necessidade de uma governança global focada em resolver os problemas internacionais com foco na cooperação e legitimação do outro como corresponsável. Diferentemente da Rússia, os chineses não almejam tornarem-se hegemônicos, pelo contrário. Seu modelo de crescimento econômico baseia-se na exportação de produtos, portanto, necessitam que cada país caminhe seu próprio destino ao ofertar uma gama de produtos e serviços.
Seu foco está nas relações multilaterais pragmáticas como o Brasil, mas, crê em outros lugares para se estabelecer o consenso e a tomada de decisão. Por este motivo considera a questão de Taiwan como assunto interno, raramente pede ajuda internacional e contribui para a economia de países próximos sem envolvimento na política interna. Acreditam na pluralidade do mundo, por isso não tomam iniciativa para conduzir essa pluralidade, oferecendo ajuda se pedido e estendendo a mão quando enxergam ser possível.
Podemos dizer que existe uma negação das nuances da política externa de cada país, ou ao menos os principais, na proposição da ONU de documentos conjuntos. Se toma por parâmetro os preceitos de Francis Fukuyama, como se todos pautassem sua ideia de sistema internacional de forma equânime. Isso é um grave equívoco. Por este motivo diplomatas ficaram frustrados ao lerem o documentos, pois esperavam uma proposta que aglutinasse pilares fundamentais, propondo uma perspectiva futura para o mundo mais radical.
Infelizmente, se perdeu uma chance de reformas profundas na estrutura da governança internacional, considerando e legitimando os países como responsáveis por essa governança em mesmo nível e interesse. A partir deste documento ficaram mais evidentes as diferenças e se aprofundou mais ainda a possibilidade de uma perigosa bipolaridade internacional, podendo acirrar os ânimos e causar mais conflitos.
Ou seja, aumenta assim a insegurança e a incerteza no mundo.